domingo, outubro 31, 2004

«Era uma amizade de alma»


Beira, Moçambique
Foto de
Brian Atkinson, a quem agradeço a autorização que concedeu a este blog para a sua publicação (thanks again, Brian).



«Fiquei muito consternada e triste com a notícia que li hoje no DN.

Tive o privilégio de conhecer de perto este casal, a Maria Rosa Colaço e o Dr. Malaquias de Lemos, que também foi meu professor no Instituto. Foi lá que foi criada uma Secção Cultural que incluía Teatro, e onde andámos a ensaiar uma peça que não chegou a ir a cena, mas cuja experiência me ficou para sempre. Essa peça terminava quando eu me voltava para a plateia e gritava "EH! VOCÊS AÍ!!!, com toda a força interior que me era possível, tentando despertar a indiferença com que se assiste à injustiça, repressão, e um largo etc. Não me recordo muito mais. Apenas que o Eurico Cordeiro (que também já não está entre nós) era quem contracenava comigo.

Como os ensaios eram já tarde, então este casal passava por minha casa e eu ia com eles.

No percurso, eu encantava-me com o discurso deles, a poesia que pairava no ar, o olhar apaixonado dos dois, os poemas que iam saindo...

A Maria Rosa Colaço tinha um olhar único que nunca esqueci. Na altura, era uma garota e só me lembro da energia fantástica, mágica, que captava desta grande senhora, quando a encontrava. Era uma amizade de alma, sem nunca ter sido propriamente uma amizade vivenciada no dia a dia. Mas estava lá dentro uma identificação inexplicável, porque o meu coração ficava sempre em festa quando falava com ela.

Segui de longe, confesso, o seu percurso. Ia sabendo que escrevia poesia e livros para crianças e jovens.

Hoje, lendo a reportagem, vi o nome de alguns livros - "O Amor é um Pássaro Azul?", "Pássaro Branco", "Gaivota", "A outra margem"... e tudo fez sentido. Era alguém que intervinha e lutava por uma sociedade mais justa, fazendo o seu trabalho muito perto das crianças.

Estou certa que terá voado numa asa dos seus pássaros, para junto do seu grande amor...

Conheci o Vasco e a Maria, ainda pequeninos. Depois veio a Sofia, mas já longe do meu horizonte. Para eles, o meu sentido pesar, a minha união na sua dor da despedida.

Mas a Maria Rosa continua a pairar entre nós com o perfume da sua poesia e a dimensão da sua alma espelhada num olhar que poisava longe, onde o Mundo é sempre belo e o Amor infinito.

Que repouse em paz, Maria Rosa. E que dessa dimensão para onde partiu, nos continue a inspirar para a beleza da vida e do Amor.

O meu até sempre! »
Milai Muje



«Faço das linhas escritas pela MILAI as minhas próprias palavras. Acrescentando somente que a MARIA ROSA COLAÇO foi minha professora primária em Nampula na Escola Roberto Ivens no ano lectivo 1963/64. Voltei a encontrá-la na BEIRA já em pleno 1966 residia então junto ao Mini-Golf ao lado do Arq. Julião. Um até sempre e os meus sentimentos aos filhos,Vasco,Maria.»
Toju Dias


sábado, outubro 30, 2004

«Antes que me arrependa»



«Confesso que hesitei em abrir este thread. Confesso que espreitei na Biblioteca e no Azulol onde a Delta abre uns threads interessantes , se haveria algum thread referente à Maria Rosa. Teria sido mais fácil para mim, leria os mesmos e eventualmente poderia participar. Não encontrei. E resolvi abrir hoje, antes que me arrependa.»
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«Sabes, delta..
Faz-me um bocado de confusão a manifestação de amizade e admiração que alunos da Maria Rosa demonstram.
Foram alunos dela da Escola Primária, acho incrível como ela os pode ter marcado desta forma...»
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«Mas uma coisa é certa...o/a professor/a da primária deixa as suas marcas, positivas ou negativas, numa criança. E eu fico feliz quando um aluno se lembra e recorda assim umprofessor. Tive alguns professores que recordo ainda... e graças a eles sou o que sou hoje...»
(...)
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Retirado de um fio de conversa no SAPO com o nome de Maria Rosa Colaço.

Um abraço para eles.
A.

sexta-feira, outubro 29, 2004

«Um cheiro intenso a coentros e pão fresco»

Petites Fleurs, Pablo Picasso
«Hoje acordei com um cheiro intenso a coentros e pão fresco do Alentejo e com a notícia de que Maria Rosa Colaço tinha falecido. Sorri e lembrei-me da Maria Tonta como Eu” ! Há livros e autores que nos acompanham toda a vida. Por vezes nem percebemos porquê. Não entendemos como aquele livro de páginas envelhecidas, sublinhado, lido e relido, se foi instalando na nossa vida. Como se foi recheando de aromas, imagens, afectos e se fez memória. Ainda não percebi se isso é mérito do escritor, do leitor ou dos momentos mágicos que ambos constróem: palavra a palavra , imagem a imagem, livro a livro. Maria Rosa Colaço sabia dessa cumplicidade , da ponte que ligava o coração do leitor ao mundo e que ela, escritora, precisava da ajuda dos seus leitores para atravessar essa ponte. Maria Rosa sabia o segredo das pequenas coisas, tecidas de tempo e memória e usava as palavras “papoila” e “malmequer” , para falar do ritual do renascer , transformar e morrer que é a vida. Sabia que o lugar dos afectos começa no levar um sorriso de mãe dentro dos olhos. Maria Rosa acreditava que as estradas podem ser largas, mesmo para os que nascem do lado mais duro da vida, mas acima de tudo acreditava na força do “semear” para mudar o mundo. Maria Rosa tinha um Deus generoso misturado com o aroma dos coentros, a cor das melancias e a paixão doentia pela sua terra Alentejana. Por isso enterrava caroços e bichos debaixo de uma nespereira, lugar mágico onde tudo podia acontecer, na esperança de ver crescer árvores, asas ou utopias. Por isso hoje, quando as estrelas nascerem, vou abrir o livro da Maria Tonta como Eu e embalar a minha filha de 8 anos com as palavras da Rosa e semear. Que Deus esteja contigo Rosa! »

Cristina Taquelim (Biblioteca Municipal de Beja)

quinta-feira, outubro 28, 2004

Palavras Andarilhas




Da matéria e do canto: um olhar sobre a produção para a infância de Maria Rosa Colaço

«A leitura dos seus textos permite perceber de forma muito clara e precisa a sua concepção de criança e de infância, a sua confiança inabalável nas suas competências e capacidades e a esperança ilimitada que deposita nas gerações mais jovens. Sem facilitismos nem simplismos óbvios, a autora privilegia textos que motivam a reflexão e o questionamento, apelam à dúvida e à incerteza, além de promoverem a imaginação pelos inúmeros jogos linguísticos e associativos que pululam nas suas publicações. A obra de Maria Rosa Colaço apresenta, pois, inúmeros pontos de contacto entre si, tanto do ponto de vista temático como estilístico, dos quais se destacam uma predilecção por ambientes e espaços naturais, a selecção frequente de personagens infantis e/ou animais humanizadas, às vezes em interacção, uma preferência por temáticas ligadas à viagem, à liberdade, à exaltação da amizade e da realização de sonhos, a par do recurso assíduo a elementos propiciadores do cómico, como é o caso do absurdo e do disparate, além da presença frequente do diálogo e do discurso directo. »

Comunicação ao VI Encontro de Aprendizes do Contar - Palavras Andarilhas (Biblioteca Municipal de Beja, 23-25/9/2004)

Ana Margarida Ramos, Investigadora e Docente da Universidade de Aveiro a quem muito agradecemos o simpático mail recebido.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Carteira


Foto publicada com autorização do seu autor, Frederico Mata, a quem envio um abraço pela sua atenção.
A.

terça-feira, outubro 26, 2004

Lendo "A Gaivota"



Lê-se na página da Associação de Professores de Português que na preparação da Semana a Ler Consigo «(...) os alunos Nuno Oliveira, Filipe Évora, João Miranda, Frederico Santos e Bruno Rocha leram o texto "A Gaivota" de Maria Rosa Colaço.»
E que «A turma aplaudiu».

Ouça aqui um excerto dessa leitura.
Um abraço.
A.

domingo, outubro 24, 2004

Espanta Pardais



Imagem retirada do Projecto Espanta Pardais, trabalhos realizados pelos alunos da Escola E.B. de Bicesse a partir do conto homónimo de Maria Rosa Colaço, coordenação de Fátima Moreira Batista.
Não percam!

sábado, outubro 23, 2004

Fábulas

«Apenas hoje [16 de Outubro] , por intermédio do blog do José Teixeira,
Paixão da Educação fiquei a saber que tinha morrido Maria Rosa Colaço.
"A criança e a vida" é um livro que tenho há quase trinta anos e nem me lembro como me veio parar às mãos. Lembro-me que chateava a minha tia, professora da "instrução primária", para ela me deixar fazer as mesmas perguntas aos alunos dela. E ia-as guardando num caderninho que se perdeu no tempo...
O que não se perdeu foi o "bichinho" que ficou dentro de mim e que, talvez mais inconsciente do que conscientemente me influenciou na escolha da minha profissão.»
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"Nunca morremos. E todos os dias somos outra coisa diferente porque todos os dias sonhamos"
Maria Rosa Colaço, "Espanta-pardais"
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Citações em http://fabulas1.blogspot.com/2004/10/maria-rosa-colao.html

Um abraço para vocês. A.


sexta-feira, outubro 22, 2004

Escrever é tentar perceber o desalinho das coisas

Entrevista publicada em "A Página da Educação"
http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=1869

quinta-feira, outubro 21, 2004

A poetisa do meu exílio

Nil Luz

Sexta-feira, 15 Outubro- Nil Luz - Cantor /compositor - Alemanha Vivi em Portugal varios anos onde fui sempre muito bem recebido por esta gente amável e hospitaleira. Hoje recebi a noticia mais triste da minha vida,pois morreu a poetisa do meu exílio. A mulher mais afectuosa, justa e humana que conheci e se tornou uma das minhas melhores amigas e parceira de composições. Choro como se fosse a minha mãe que partisse, choro como se Maria Rosa fosse a minha primeira casa. Deus hoje veio a terra para colher a melhor das Rosas
Publicado em www.correiodamanha.pt e em www.publico.pt e aqui transcrito com a devida vénia.

terça-feira, outubro 19, 2004

O Sabor das Palavras

Há uma excelente fotografia em O Sabor das Palavras. Nela aparece a Professora Maria Rosa Colaço com alunos de 60/61. Obrigado a Manuela Gomes pela referência.

Com um abraço de L.




Com pombas e sonho,
escrevi (orientei) esta antologia
para que, ao menos pela voz clara
da infância, os adultos se
apercebessem dos abismos e
da noite que contorna o mundo.
Porque, como F. Pessoa, também
digo:
"O melhor de tudo, são as
crianças".
Maria Rosa Colaço

---
Com um abraço de L (http://www.fazendocaminho.blogspot.com/)

Com um abraço de Helder Raimundo



LIVRO: «A Criança e a Vida»

Helder Raimundo #

Já conhecia o livro havia tempo. O trabalho de Maria Rosa Colaço, professora do ensino primário, era uma lufada de ar fresco no ensino tonto e saloio dos anos 60 e nas escolas tristes e salazarentas da época. Os textos que recolheu, poesias e histórias, ferventes e imagéticas, de meninos das ruas e dos bairros de lata na margem sul de Lisboa, eram flores anunciando o Abril futuro. Poderiam ter sido escritos por qualquer um de nós, que entre 1960 e 1969, se sentaram irrequietos nos bancos velhos das escolas, aprendendo as letras com que, hoje, nos ajudam a pensar sobre elas próprias.

Lembro de ter lido o poema da contra-capa do livro e ter pensado no quotidiano do Vitor Barroca Moreira, que o escreveu aos nove anos: “O amor é um pássaro verde, num campo azul, no alto da madrugada”. Lembro ainda de ter visto a minha infância neste poema, de liberdade, de aventura, de protesto. Mas havia outros, muitos mais, cheios de flores, amizades e zangas, como o do Inácio da Silva Cruz, de 10 anos: “O amor é como duas borboletas que estivessem sobre uma rosa, a mais linda de todas do jardim. O amor tem que haver. Se não houvesse amor não havia nada bonito. O amor são duas estrelas a brilhar, a brilhar. A rosa e o sol são o amor. O amor é a poesia. O amor são dois passarinhos a construir a sua casinha. O amor é não haver polícias”.

De Maria Rosa Colaço, disse Casimiro de Brito, poeta louletano: “Educadora, escritora vigilante e aberta: aberta à soterrada voz do seu povo, aos longos silêncios que rodeiam a corrupção, à deslumbrada visitação do sol pelas crianças, à quotidiana construção do amor”. Estas são palavras de poeta, de gente que nega a morte, não negando o poema ou as palavras com que se fazem os Homens.

É como a viagem à lua do Manuel Miranda, de 8 anos: “Despedia-me do meu pai e da minha mãe. Preparava as malas e ia para a lua. Quando lá chegasse falava com Deus e os anjos. Ficava lá com os meus companheiros e nunca mais voltava porque encontrava os anjos a cantar e as estrelas ali mesmo ao pé. Porque lá não havia guerra e lá estava muito sossegadinho e não havia misérias, nem morria ninguém”. Assim, o Manuel viajou à lua, antes de outros, como o principezinho da história.

Maria Rosa Colaço diz-nos que estas crianças “não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram filhos de pescadores, de varinas, de ladrões de coisas...essenciais ao dia-a-dia. Moravam em casas com buracos e dormiam nos barcos, no vão das portas, nos degraus da doca, em qualquer sítio”.

Comprei este livro em Coimbra, em Novembro de 1992, para voltar a sentir o eco fundo dos seus apelos de criança. E agora, ao pegar nele posso dizer mais uma coisa: a sua autora, Maria Rosa Colaço, depois de rumar a Cacilhas/Lisboa, para educar as crianças da rua, escreveu neste jornal. Na «Voz de Loulé» escreveu muitos textos, insertos na página literária “Prisma de Cristal”, coordenada por Casimiro de Brito. O seu primeiro texto publicado é de 1 de Janeiro de 1957.

É ela que diz: “Companheira do sol e das raízes, cheguei à grande cidade”. Nós acompanhamo-la!

Maria Rosa Colaço A Criança e a Vida, Edições ITAU, Lisboa, 12ª edição.

Fontes
http://aculturaeparasecomer.blogs.sapo.pt/arquivo/167152.html
http://contrasensus.blogspot.com/2004/10/maria-rosa-colao.html

segunda-feira, outubro 18, 2004

Uma flor na sua memória



A Notícia

Chego a casa e dizem-me que a minha professora primária, a Maria Rosa, morreu. Que passou a notícia no rodapé do telejornal. Olho ainda entontecido para a televisão procurando qualquer coisa que já não há, um rasto, um fumo. Subitamente tudo perde gravidade.

Que fazer, que pensar, agora que o luto ainda não começou, agora que aquilo que aconteceu ainda está em suspenso?

A Maria Rosa Colaço foi minha professora primária, da segunda e até quase ao fim da quarta classe. Dizer isto é muito pouco. Não é nada. Se fosse poeta poderia dar-vos a pessoa que conheci, mas não sou. Só os poetas, alguns poetas, pouquíssimos, se aproximam da verdade. O resto, nestas circunstâncias, é obituário, coisa fúnebre e vazia, sem relação sequer com a morte.

Assim como são as nuvens que revelam o céu, lança a morte uma derradeira luz sobre a vida. É isso que devo procurar.

Por razões que não conheço completamente, mas irremediáveis, depois que se despediu nunca mais a vi. As recordações que dela tenho são as do miúdo de 8 e 9 anos que fui e essas recordações, fotográficas, permanecem intocadas. Praticamente nem as troquei com outros, não as transformei.

Li já não sei onde que sob alguns continentes persistem enormes jazidas de água potável a que a Humanidade um dia recorrerá. Nos meus dias mais negros, daqueles que toda a gente tem, recorro à água pura desses momentos.

Gostaria de poder pousar uma flor sobre a memória da Maria Rosa mas temo não saber como fazer. O mais que posso tentar é usar este espaço (que é vosso também) para vos dar alguns fragmentos da vida que vivemos, ela jovem professora, eu um puto de olhos arregalados ao que me ia acontecendo. Na esperança de que isso revele a outros a pessoa da Maria Rosa. E sem grandes preocupações de objectividade, que a verdade destas coisas não passa muito por aí.

Perdoem-me se para o fazer falo de mim, mas neste momento não consigo separar uma pessoa da outra.

Que este espaço sirva para que todos aqueles que privaram com a Maria Rosa, na Escola ou fora dela, possam aqui deixar uma recordação, uma fotografia, um desejo, uma ideia. E que com isso possamos multiplicar, cada um à sua maneira, a pessoa que agora me dizem que desapareceu. A sua obra, em grande parte, somos nós.

Deixo-vos assim alguns estilhaços do que intensamente vivi com a professora Maria Rosa Parreira Colaço.







O Antes e o Depois

A minha primeira classe começou em 7 de Outubro de 1957, num segundo andar que ainda existe em Cacilhas. A professora que nos coube em sorte era desleixada e nada carinhosa. Evitava olhar para ela. Preferia a janela onde me perdia olhando o telhado em frente e uma nesga de céu: Ervas lentas por entre as telhas, nuvens que passavam, pardais breves, sons da rua lá em baixo. E o tempo sempre parado. Cheguei a balouçar os pés, que não chegavam ao chão, na esperança de o acelerar. E a carteira com tinteiro, e o meu parceiro, balouçavam também. Em vão.

Na parede maior havia um cartaz de prevenção de acidentes, um poster em vários quadros. No primeiro via-se um operário a sofrer um corte numa máquina. No seguinte percebia-se que apenas lavava a ferida com água da torneira, o que o iria infectar. No quadro final, a manga do casaco vazia, enfiada no bolso, fazia dele já um amputado. Mil vezes revi a sequência sempre com o mesmo resultado.

Em frente, duas fotografias. Salazar e Craveiro Lopes. E um crucifixo oficial ao meio. Um Mapa-Mundi, também. Quadro, régua, transferidor. Um armário com uma panóplia de objectos que a princípio pensei serem de farmácia – os litros, os centilitros e os mililitros. O chão era podre. Divertimentos só dois. O primeiro, o mais comum e saborosíssimo: Falar, falar, falar, falar muito, com o colega de carteira, com os da frente, com os de trás, falar sobre tudo, até que um grito estalasse no ar e nos calasse. O segundo: Sorrateiramente deixar cair um pedaço de pão para uma frincha que havia no chão. Por vezes nem dava tempo de vermos a cabecita do rato a levá-lo. Havia um outro divertimento, semanal e mais pessoal, apontar os resultados do campeonato, somar os pontos em gráfico de termómetro, e concluir aliviado que o Benfica smpre ia à frente do Belenenses. Os outros clubes não interessavam. Depois tentava perceber onde é que por carga de água ia a aula.

A primeira aula foi marcante. De caderno de duas linhas aberto, por estrear, tivemos de molhar pela primeira vez o aparo no tinteiro azul e escrever, nós que não sabíamos escrever, «Cacilhas, 7 de Outubro de 1957». A professora escrevia no quadro e nós lá íamos desenhando aquilo à vista, sem compreender o que fazíamos, tentando reproduzir aqueles sinais de giz, uma curva para cá, uma volta para lá, pior que chinês. Claro que não coube na linha. Deu uma volta, sobrou horrendamente para baixo, tudo inclinado. Depois borrões, dedos sujos. E medo pelo resultado. Eis a primeira aula. Que só correu bem aos repetentes.

A professora quase todos os dias virava um aluno contra a parede, de castigo. Ou lhe enfiava um capuz de cartão com orelhas de burro que ela própria fazia. Nesse caso era colocado à nossa frente. Lembro-me do esgar do mais alvejado. Tinha-lhe morrido a mãe e na escola era o burro. Evitava olhar.

Numa manhã, à entrada, as mães rodearam a professora e perguntaram-lhe bajuladoras: “Então, minha senhora, vem cansada?”. E ela respondeu prontamente:”Enquanto tiver estas mãos para bater nunca me hei-de cansar”, e abriu caminho por entre as mães, os alunos e a carroça da sopa que os soldados do quartel de Almada nos traziam todos os dias. Quase aplaudida.

Se vos relato isto é porque dois anos depois, agora já na terceira classe mas com a Maria Rosa, regressaríamos àquelas mesmas instalações, mas as paredes, o chão, o quadro preto, tudo se haveria de transformar. Como que por dentro. Definitivamente.

Da primeira professora, por muito que me esforce, só recordo o que contei. Nem o nome, nem as feições, nem a voz. Da segunda hei-de me recordar de tanta coisa que por vezes penso que me recordarei sempre de tudo.

Em 1958, agora na segunda classe e por alternância, o edifício destinado à turma foi o de Almada, por trás da Praça Gil Vicente, onde eu morava. De modo que no dia 7 de Outubro saltei o muro do meu quintal e fui para escola. Sentámo-nos. Três meses de férias tinham apagado qualquer rasto de tabuada e de escrita. Apenas os meus colegas eram os mesmos, menos os que tinham ficado para trás e estariam a essa hora a repetir a humilhação inicial.

Na sala, à nossa espera, estava uma professora muito jovem, bonita. Com as mãos nos bolsos, o polegar de fora, como a vi tantas vezes fazer, misto de timidez e de determinação, esperava que nos sentássemos. Enquanto amainava a barafunda de 40 alunos a regressarem das férias grandes, afastou o estore de palhinha e foi olhando para o Alfeite, o Seixal, o Barreiro, juntando o que via ao que já sabia . Depois pôs um sorriso e disse com vivacidade o seu nome. E mais, que queria ser nossa amiga. Surpresa, muita surpresa e incredulidade. Mas havia de ser assim. A tal ponto que as mães demonstravam ciúmes dessa professora de quem os filhos diziam tão bem e decidiam vir à escola ver com os seus própros olhos o que se estava a passar.

Que saudade.




Almada Negreiros, "Auto-retrato" (1943)

Sítios. O Café Central

Levou-me a muitos sítios que eu nem sabia que existiam. Exposições, colóquios. Conversei com pessoas que nunca soube quem eram mas que traziam nelas um outro vento, vestígios de outros mundos. Foi ela que me mostrou pela primeira vez reproduções de Picasso e do Almada Negreiros. A Guernica, essa, várias vezes.

Mas hoje leva-me, como em muitas outras ocasiões, ao Café Central. O meu pai dá-me dez tostões “para o que for preciso” mas ela não me deixa pagar o meu bolo de arroz, que aliás acabava por durar a tarde inteira. Pega nos seus papéis e trabalha. Eu olho. É elegante como não há assim no café.

Chega entretanto o escritor Romeu Correia, baixo, atarracado, forte que nem um boxeur, e sempre de laço. Talvez o primeiro laço de Almada. Traz fólios do seu novo livro (Trapo Azul?, Bonecos de Luz?). Eu nunca tinha visto um fólio, essa espécie de intimidade do livro, uma folha enorme que quando sucessivamente dobrada dá um caderninho, e um conjunto de caderninhos colados dá depois um livro. Ele abre um e as folhas impressas desdobram-se e ficam como que descontroladas, uma virada para norte, outra para leste, etc.., espalhadas e juntas. Vou olhando. Ele emenda as gralhas, furioso. Risca por cima da letra tipografada, sobre aquele quase livro, o que para mim é um sacrilégio. A certa altura vê que o observo, pára, dá-me uma folha em branco e pede-me que escreva um poema. E eu, envergonhado, escrevo qualquer coisa que envolve “o som grisalho dos pinheiros”. Acabo rapidamente e baixo os olhos na direcção do meu eterno bolo de arroz. Mas ainda me dá para perceber que o Romeu e a Maria Rosa trocam olhares que intrepreto assim: “Vês, vês, as crianças podem escrever”.

Quando muito mais tarde surgem textos destes no livrinho A Criança e a Vida, numa compilação de muitos alunos e de várias escolas, houve quem não acreditasse . Magoou muito mas até se percebia. Pudera, se nem os adultos escreviam quanto mais as crianças. Mas era tudo verdade. Quando o meu amigo José Inácio escreveu “o amor é não haver polícias” estava a referir-se ao pai, preso político. Conheci muito bem em que condições viviam.


Sítios. O Café Central (2)

À mesa do café como tantas outras vezes. Ela acabou o que tinha a fazer. Lembro-me que a porta giratória rodava algo descentrada e por isso ginchava um pouco. Tentei aplicar à situação um termo técnico que vinha definido nos livros de mecânica do meu pai, as minhas primeira bíblias. Qualquer coisa relacionada com “veios de excêntricos”. Mas não me fiz entender. Então ela põe uma folha A4 no centro da mesa, puxa da sua bic preta e escreve uma estrofe. E eu, a vermelho, escrevo outra. E assim sucessivamente, à desgarrada. Ou como na escrita automática dos surrealistas. Duas páginas cheias. As linhas dela rasgadas e belas. No fim assinámos com enorme importância.


Embora a forma fosse a de um poema não era um poema. Era uma brincadeira. Ou era um poema. E agora? Ainda hoje o tenho.


Santinhos

Hoje estamos na sala quando de repente entra um padre. A aula fica em suspenso da nova autoridade. A Maria Rosa passa para segundo plano, como se tivesse chegado um inspector do ministério. Pergunta-nos se queremos ver um filme. Exultamos. Um filme de cóbóis gritamos nós imaginando já os índios, os cavalos, o pó na pradaria. Então o padre monta um pequena maquineta na qual coloca um curto rolo de filme que mostra imagem a imagem. Um filme parado. É sobre os sete últimos dias de Jesus na terra. Traz esquemas e tudo, como se desenhado por um engenheiro. Primeiro foi a decepção. Aquilo não era um filme. Sim, porque alguns de nós já tinham ido às matinés da Academia Almadense, ou da Incrível. O Padre lá ia explicando, no primeiro dia isto, no segundo depois foi aquilo, mas aqueles miúdos já estavam habituados a fazerem perguntas. E a obterem respostas. E não se contiveram. “Como sabe que foi assim, se na altura não havia fotografias?”. “O meu pai diz que não foi nada disso”. “Lá em casa dizem que Deus não existe”. Etc.. Pede-se silêncio mas o sururu aumenta. Definitivamente a sessão não resulta e é melhor não continuar. Então o padre recolhe o aparelho fumegante e passa à recolha de fundos, uma venda de santinhos, em cromos. Eram muito poucos os que traziam dinheiro para a escola. Para não fazermos má figura, uma vergonha, quem tinha comprou, quem não tinha prometeu trazer na próxima semana. Mas na semana seguinte muitos de nós voltaram a não trazer tostão nenhum. Insistência. Então a Maria Rosa chamou o padre de parte, mas eu que morava na segunda fila ouvi perfeitamente, e disse-lhe mais ou menos isto: “Olhe, eu já não tenho idade para isto, e eles ainda não a têm”. Não voltou mais. Naquele tempo isto podia-lhe ter custado o emprego.


Sítios. A sua casa.

Hoje leva-me a sua casa. Um pequeno quarto alugado, perto da escola e a duas ruas da minha. Não obstante a proximidade é tudo estranhamente diferente. Espanta-me que um prédio tão próximo do meu possa esconder tanta diferença. Olho intensamente como só os miúdos conseguem. À esquerda uma máquima de escrever, com caixa preta, talvez uma Smith Corona. Em frente a janela. Numa mesa uma caixinha com cigarros, marca LM. “São fracos, são de senhora”, esclareceu-me depois o meu pai, desvalorizando a questão. Livros e papéis, muitos, alguns em francês. A partir daquele momento passei a desejar vir a ser... bancário – era assim que os imaginava, a falar línguas e a escrever à máquina, essa coisa de eleitos. Durante anos namorei uma máquina de escrever que estava na montra de uma casa de penhores, junto aos Bombeiros de Cacilhas, mas custava um conto e duzentos. Voltemos ao quarto. À direira há um quadro inquietante. Em tons de azul nocturno, numa praça de touros vazia, um touro olha-me perplexo. Há-de olhar assim para mim a vida inteira.


Laranja

É uma daquelas intermináveis tardes de verão em que tentamos desgraçadamente resolver problemas que nem os adultos algum dia hão-de ter de resolver. Mete tanques que são alimentados por torneiras várias, cada uma debitando x e y de água por minuto, são 3 horas a que horas estará o tanque cheio. Nas últimas filas da sala que me parecia imensa, há problemas. Professora e aluno discutem. A coisa está feia. Há um castigo. O aluno, um calmeirão, começa a chorar. É dos mais velhos, daqueles quase homens que quando não vão à escola é porque estão a trabalhar. Está muito calor. Ela espera que ele acabe de chorar. Depois senta-se na mesma carteira, descasca uma laranja da baía e comem-na os dois em silêncio. A turma fica em paz.


Tito

Um dia percebemos que o Tito, habitué da esquadra da polícia, que fuma e tem fotografias de mulheres nuas, ronda a escola. Minha senhora cuidado, ele faz isto e faz aquilo. Medo, os putos estão assustados, a aula não pode continuar. Ela sai, fala com ele, pergunta-lhe pela mãe, falam um pouco. De seguida pede-lhe ajuda para umas coisas pesadas que há que fazer na escola, coisa de escadote. Ele acede orgulhoso de mostrar a sua diferença face àquela cambada de putos ranhosos. E depois vai-se embora. De vez em quando volta para patrulhar a escola, para saber se está tudo bem. Quando precisarem é só dizer. E sempre que o avistamos lá fora é gritaria geral na sala.

Se entre os meus colegas tivesse estado um Ettore Scola, um Oliveira, uns irmãos Taviani. Mas não aconteceu. E por isso todas estas vozes que ainda ouço se abafam um pouco mais todos os dias.


Explicações

Se as aulas eram de manhã então dava explicações de tarde, numa pequena garagem em Cacilhas. Tinha explicações não quem podia pagar mas quem precisava. Lembro-me de olhar à minha volta e eram mais os que não pagavam.









Príncipes

Tínhamos um horário na parede. Das tantas às tantas aritmética, depois gramática e assim sucessivamente. Mas nunca aquele horário servia para grande coisa. Quando chegava a vez do Português, para além das preposições (que ainda hoje posso dizer de cor, e se para tanto for desafiado também digo de rajada o sistema montanhoso Galaico-Duriense ou o Montejunto-Estrela), para além dos verbos e dos predicados, para além dos textos do programa sempre cheios de “capelas votivas”, “venerandas figuras” e reis bons de Portugal que lutavam contra os reis maus de Espanha, para além dos milagres avulso como o daquele regaço que na hora certa debitou rosas, depois disso, dizia, acabava quase sempre por puxar de um livro, mas dos dela, ora prosa ora poesia, ora ainda teatro, que nos lia com uma convicção de hipnotista.

Um dia leu-nos o Principezinho. Explicou-nos quem era Saint Exupery, o que fazia sobre o deserto no seu avião e de como em vez de chorar por diversas vezes uma morte quase certa se punha a escrever uma história para dar um livro aos restantes homens. Eu já não vos sei contar como as coisas se passaram mas asseguro-vos que foram muito muito intensas.

A noite do deserto, as estrelas em mapa, o oceano de cima.


Raças Humanas

Idem quando tínhamos de estudar o Mapa Mundi, no qual mal cabia o Império, do Minho a Timor onde o sol nunca se punha. Acabava por falar das culturas africanas. Desenhava as palhotas, falava da comida e da música dessas terras, e do respeito que os homens devem demonstrar entre si. Tinha uma quase obsessão pela palavra Irmão. Sem esquecer os animais e as plantas, seres vivos como nós.

Em contraste, o livro oficial ilustrava com boçalidade as "diferentes raças humanas”.


Humberto Delgado

Quando em 1958 Humberto Delgado passa por Almada, gera a maior concentração de pessoas, de esperança e de promessa de liberdade que alguma vez vi, mesmo se contarmos com o 25 de Abril. Uma multidão enche vibrante a Praça Gil Vicente, rodeia o candidato, mal permite que o carro avance. As pessoas, aparentemente todas as pessoas, arrancam as flores do jardins e lançam-nas sobre ele que passa agradecendo. Eu nunca tinha visto uma multidão assim e muito menos sabia que os adultos podiam gritar aquelas palavras daquela maneira. Inesquecível.

Dias depois passou o outro. Sei que passou porque no centro da Praça vazia havia um inusitado polícia que fez continência a um Mercedes preto. E também porque na véspera andaram a recolher todos os pedintes de Almada.

Por que conto isto? É que fiquei sempre com a impressão que naquela explosão do Humberto Delgado havia mão da Maria Rosa.

De facto, muitas vezes falando baixo, dava-nos a entender que os portugueses não tinham de viver assim, pobres, analfabetos, com um alcoolismo endémico e patrioteiro, com uma tuberculose que grassava sem penicilina (vi eu hemoptises em plena rua) e sempre com medo.


A Ramona

Para quem não sabe, ramona é como chamávamos aos carros celulares. Havia um certo trânsito delas naquele tempo, fruto das visitas que a PIDE decidia fazer de madrugada. E de dia serviam para intimidar, ou como se dizia, para infundirem respeito.

Um dia estou em casa e ouço um grande estrondo. Vou ao terraço. Uma ramona acaba de estourar um pneu quando descia a Avenida Afonso Henriques na curva para a Cova da Piedade. Adorna e já não anda. Dois polícias saem para verem a coisa. Não há azar é apenas um pneu furado. Mas das bandas da Quinta da Alegria, bairro pobre, surgem mulheres que se vão juntando. E rodeiam os polícias, gritam, puxam pelas portas, abanam a ramona de alto a baixo, já não a largam. E os presos conseguem escapulir-se! Posto o que o magote se desfaz num ápice. Só lá ficou a viatura vazia. E os polícias.

Chego à escola e conto. Rimo-nos muito, muito, sem palavras.


Cozinha

Em muitas ocasiões a minha casa foi a continuação da minha escola. Nos dias de maior entusiasmo subia para um banco mesmo no centro da cozinha, onde tudo acontecia, e de livros em riste desatava numa sabatina impiedosa sobre quem ousasse passar por ali: Vá, digam lá, como se distingue uma estrela de um planeta? Por que se chama Via Láctea à nossa galáxia? Por que falham as provas dos noves? Como se encontra a Estrela Polar? Como foi decidido o meridiano de Tordesilhas? Como se escreve “Nós comemos a noz”? etc. etc.. E os meus pais e os meus avós, desprotegidos, lá iam tentando jantar, acenando que sim e que não com a cabeça às minhas perguntas.

Depois chegava o meu primo Edmundo, que era músico e por isso jantava mais tarde, e com ele a conversa deslizava com facilidade para as mesmas estrelas, planetas e cometas, mas desta vez incluindo marcianos e discos voadores. Até porque eu, para além de bancário também queria ser astronauta.

Entre a escola da Maria Rosa e a cozinha da minha casa havia uma comunicação invisível, telepática, de astro a astro.






As Esferas Celestes

Andar com a professora para todo o lado, embora não fosse o único, poderia ter-me dado enormes dissabores. Como seria fácil de esperar por parte dos mais crescidos, os que ostensivamente se sentavam lá atrás, malta de voz grossa, que fumava e bebia e tudo o mais. Mas o que é certo é que a consideração pela professora Maria Rosa era tão grande que eram os próprios matulões a protegerem nas alturas certas este seu raquítico colega.

Dava-me tão bem com eles que acabei por aproveitar a situação, estabelecendo com alguns um prosperíssimo comércio: Trocava o meu lanche por berlindes. E no espaço de dias dei por mim riquíssimo, com uma fabulosa colecção de berlindes das mais diversas cores, tamanhos e valias. Não riam. Olhem que havia uma hierarquia muito cerrada para os berlindes e alguns eram muito raros, valiam muito, aquilo não era brincadeira nenhuma.

Experimentem colocar um berlinde junto a uma pupila e olhem para a luz, como eu fiz centenas de vezes. Rodem-no. Verão planetas, cometas, outros mundos. Nunca falha, mesmo em adulto.

Agora tenho andado nos sites da NASA e da ESA a espreitar o que há de novo com a sonda Cassini. É o mesmo. Apenas actualizado.


Norte

Para além das redacções do programa sobre as vaquinhas que dão leite ou as árvores que dão sombra, que tínhamos de saber de cor porque uma delas sairia na prova de passagem, também fazíamos outras mais ousadas. Sobre as guerras mundiais por exemplo. Lembro-me que foi nessas redacções que escrevi pela primeira vez Eisenhower e Hiroshima e Nagazaki.

Estou convencido que por vezes a Maria Rosa fazia connosco alguma experimentação, curiosa de ver o que os putos eram capazes de dar. Depois da redacção “Se fosses bicho que bicho gostarias de ser” (elefante, não tanto pela tromba, muito utilíssima, mas pelas enormes orelhas de abano, para me refrescar, este o teor do que comuniquei, eu que já nessa altura penava com o tempo quente), seguiu-se uma bem difícil. Disse: Podem ir para o recreio quando acabarem a redacção cujo tema vou escrever no quadro: Uma Viagem à Morte. É verdade, assim mesmo.

Tremi. Tocar no tema podia dar azar. O meu pai podia adoecer. Mas tenho de fazer a redacção se não hoje não saio. E daqui a bocado já jogam. Então faço-me de desentendido. Escrevo uma redacção sobre uma Viagem ao Norte, que metia ursos polares e pinguins. Depois deixo o caderno em cima da carteira como era costume e disparo a correr pelas escadas abaixo na direcção da bola.

No dia seguinte sou recebido com um sorriso cúmplice. Escapei.

Hoje escrevo sobre a morte da Maria Rosa. Hoje não escapamos.

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Eu podia estar aqui a noite inteira a contar-vos coisas da Maria Rosa. E de como agora é difícil falar da sua partida. Olho de novo para o telejornal, mas não há rasto. E o meu coração começa lentamente a perceber. Perceberá melhor mais tarde, não já, que a vida duvida sempre da morte.

Que fazer para colocar uma flor na sua memória, eu que sempre achei que o que é dito nos funerais apenas acentua o vazio e o incompreensível?

Abro a última gaveta da minha secretária, aquela onde costumo esconder coisas atrás do tempo, coisas que levo anos até poder pensá-las livremente, e tiro uma pequena carteira que há 40 anos me trouxeram da mítica América. Lá dentro há uma fotografia dos meus pais, tirada por mim (por que não fotografei eu a minha querida professora primária?!). E há também um cartão de visita. No verso, com uma letra desenvolta e inteligente mas com uma tinta subitamente esmorecida, diz em maiúsculas, «O ANTÓNIO JOAQUIM E O VÍTOR FIGUEIREDO SÃO DOIS POETAS PREGUIÇOSOS QUE – ÀS VEZES – GOSTAM DE SONHAR. DAR-ME-IAM GRANDE ALEGRIA SE TRABALHASSEM SEM DESÂNIMOS, COM ESPERANÇA E MUITA CORAGEM».

E na face do cartão: «Um beijo da vossa» Maria Rosa Colaço.

Na era da Internet gostaria de partilhar este cartão com os meus colegas de turma, putos que nunca mais vi, e que estarão algures por aí, mais os que já partiram, como o Luís Filipe e o Telmo. Com esses da minha escola e com os de todas as outras escolas por onde ela passou, nas várias partes do Mundo.

O cartão está no topo deste blog. É vosso.

17 de Outubro de 2004

António Matos Rodrigues

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Notas:

Fotos minhas, excepto se houver indicação em contrário.
Agradeço à minha filha
Joana Saramago a paciência que tem tido na orientação do design deste blog.