sábado, fevereiro 19, 2005

Cacilhas, 17 de Fevereiro de 2005



A homenagem

A sala estava muito bonita, forrada com fotografias da Maria Rosa, capas dos seus livros e desenhos de crianças de turmas várias. Numa mesa, à disposição dos presentes, havia cadernos com recortes de jornais e revistas, entrevistas e fotografias de várias épocas.

O Henrique Mota, da Associação de Cidadania O Farol e alma desta homenagem, começou por agradecer a presença de todos e o carinho especial posto pela D. Guida do Café com Letras , a Ermelinda Toscano e amigos vários que puseram a exposição de pé.



Emocionado, teceu algumas considerações em torno da homenageada, que nos seus últimos tempos fora frequentadora daquele espaço.

Em seguida pediu a dois dos alunos da sua primeira turma, os da geração de A Criança e a Vida, que dissessem de sua justiça.

O primeiro foi o Vítor Figueiredo, que leu um conhecido poema seu, escrito aos 10 anos.




O amor

O amor é uma paisagem da alma.
O amor é verde como a esperança.
O amor é o carinho, a alegria, a verdade.
O amor da Pátria, é lutar contra a Pátria dos outros.
O amor é alga pintada e espuma no mar profundo.
O amor veste-se de cores do sol.
O amor da mulher é a paisagem do homem.

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De seguida, outro ex-aluno, o António Joaquim, propôs-se revelar uma fotografia com 45 anos.

Revelando uma fotografia



«Os meus especiais cumprimentos à família, filhos Sofia, Maria e Vasco.



Um grande abraço aos meus queridos colegas de turma, malta fixe, aqui muito bem representados pelo Vítor Figueiredo e pelo José Inácio.

Os meus cumprimentos às suas com-sortes e filhos.

Uma palavra especial para recordar o Luís Filipe e o Telmo Godinho que não podem estar aqui hoje fisicamente connosco.

Uma grande palavra de apreço ao Henrique Mota, à Ermelinda Toscano e ao Café com Letras, pela enorme ternura que é esta sua iniciativa.

A todos os presentes o meu abraço, prometo não tomar muito do vosso tempo.

Trago-vos uma fotografia. Bom, é e não é uma fotografia. Já lá vamos.

Vão-me desculpar, vou falar da Maria Rosa apenas indirectamente. Outros poderão falar melhor do que eu.

As minhas memórias são talvez e infelizmente as mais longínquas porque depois de 1960 ou 61 não nos voltámos a encontrar.

Daí que às vezes pense que me lembro de coisas, outras vezes fico na dúvida se me lembro mesmo ou se me lembro de me lembrar, outras ainda se me lembro de ter contado.

Isto pode parecer de somenos, mas não é. Porque aquilo que devo a este momento de homenagem é, acima de tudo, a procura da verdade do que se passou. E se possível não alterada pela emoção do que se passa hoje. Aliás, a verdade desses tempos da escola da Maria Rosa não necessita de lentes de aumentar, ela vale por si se bem contada e qualquer panegírico até poderia soar a falso.

Deste modo animado do propósito de objectividade, que devo eu trazer aqui, hoje, a esta homenagem, que possa funcionar como elemento de verdade e que se acrescente aos vossos elementos de verdade?

Uma fotografia.

Bom, mas eu não tenho nenhuma fotografia.


Se tivesse uma fotografia desses tempos, tirada na escola, com a Maria Rosa ou com os meus colegas, trá-la-ia. Como não tenho lembrei-me de procurar qualquer coisa que pudesse funcionar como tal, com a mesma carga de verdade que uma fotografia sempre tem, isto é, com o mesmo poder revelador. Como alguém disse, o tempo corre a favor da fotografia. Qualquer fotografia contém novas verdades por cada ano que passa, o tempo dá-lhe novidades, devolve-lhas. Se buscarmos uma fotografia com 20, 30 anos veremos que ela, de facto, contém muito mais do que aquilo que no momento foi aparentemente fotografado. Daí o seu mistério, a sua potência. Há uma vida que se esconde nas fotografias durante anos até que um dia ela nos toca no ombro. Hoje é um desses dias.

Como vos disse não tenho nenhuma fotografia. Mas tenho qualquer coisa de semelhante: Um caderno de exercícios dessa época. Tem contas, desenhos e redacções.

Há nele uma redacção que me é particularmente importante, porque tão reveladora como seria uma fotografia dessa época onde nós, porventura, estivéssemos a rir, ou a fazer fosquices, no fundo onde nós estivéssemos a ser crianças, brincando intensamente e a sério como dizia o Picasso.

A redacção que escolhi, parte dela já a coloquei no blog e é sobre a amizade. Aparentemente é uma redacção banal: Há uma criança, neste caso a criança que eu fui, que se chamava António Joaquim, que diz que a amizade é uma coisa boa e que tem amigos. Tudo normal.

Mas peguemos agora numa lupa, aproximemo-nos das imagens que lá estão. Vejamos então a fotografia que vos trouxe.

Escreve essa criança a determinada altura:

«Tenho amigos, não esquecendo a minha amissíssima Maria Rosa»

Que vemos nós agora à distância de 45 anos? Que surge agora na fotografia como coisa nova acabada de nascer?

Em primeiro lugar que esta criança não dá erros de ortografia. Nesta redacção não dá nenhum, noutras dá pouquíssimos. Com a Maria Rosa a falta de um acento ou de uma cedilha contava como um erro. De onde se deduz que a escola da Maria Rosa era eficaz. Estou aliás em crer que se naquele tempo tivesse havido um campeonato de Português, ou pelo menos de ortografia, os seus alunos teriam feito muito boa figura. Há uma imagem nítida que retenho desses tempo – a do trabalho sério, porfiado, insistente. Não havia facilitismos. Ela lutou muito connosco.

Aproximemo-nos um pouco mais e vejamos um segundo pormenor: Quando este aluno escreve «a minha amissíssima Maria Rosa» fá-lo sem hesitações. Não há margem para dúvidas, este miúdo ao escrever o que escreve não está a fazer batota. E se for preciso eu posso testemunhar - ele tem uma amissíssima Maria Rosa. E, aqui entre nós, que ele adorava.

Aproximemo-nos ainda mais. Estamos lá quase. Analisemos a caligrafia. Pode parecer estranho mas é isso que vos proponho.

Não sendo boa, a minha caligrafia mudou muito desde essa altura e sempre para pior. Na Emídeo Navarro para onde depois transitei tive mesmo oportunidade de ser bi-repetente numa disciplina com esse nome que metia os cursivos francês e inglês, papel pautado, canetas de aparo e tinta, tudo próprio de contabilistas em desuso. Um horror.

Se não fossem hoje os computadores estaria muito bem tramado. Não vos poderia escrever esta fotografia.



Regressemos a ela: Quando este miúdo, já então com a sua difícil e ofegante letrinha, escreve que «tenho amigos» não posso deixar de ver claramente que o «t» é uma imitação, uma incorporação, uma adoração do «t» da escrita do meu pai. E quando esse mesmo miúdo mais à frente escreve «amissíssima Maria Rosa» e no fim da página quando assina o seu nome, António Joaquim de Matos Rodrigues (aliás assina várias vezes como que a reforçar e autenticar a mensagem), os seus «M» maiúsculos estão escritos como a MAria Rosa sempre os escreveu e eu nela me inspirei. E assim mantive para sempre na minha escrita.

Chegamos finalmente àquilo que Roland Barthes em A Câmara Clara descreve como o punctum da fotografia, o que nos puxa para a fotografia, que capta a nossa atenção, aquilo que a fotografia escolhe para nos revelar: Ao longo da minha vida, tanto nos assuntos mais banais como nos mais importantes, sempre que assino o meu nome, esse acto tão pessoal, essa coisa tão própria de quem tem esse particular nome, no «M» de Matos está a Maria Rosa a assinar também qualquer coisa por mim, com a sua própria letra. E eu por ela, com a minha. »

Cacilhas, 17 de Fevereiro de 2005

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Em seguida, Boieiro leu um poema de José Inácio da Silva Cruz, escrito aos 10 anos,

Mota e Boieiro


O Amor

O amor é como duas borboletas que estivessem
sobre uma rosa, a mais linda de todas do jardim.
O amor tem que haver.
Se não houvesse amor não havia nada bonito.
O amor são duas estrelas a brilhar, a brilhar.
A rosa e o sol são o amor.
O amor é a poesia.
O amor são dois passarinhos a construir a sua casinha.
O amor é não haver polícias.


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E a sessão de leitua terminou com Boieiro a ler "Cante Alentejano" de Maria Rosa Colaço.





Seguiu-se uma singular confraternização em que alguns dos presentes tentaram pôr em dia uma escrita atrasada 45 anos!

Vítor Figueiredo, AJ e Mota


Vítor Figueiredo e Boieiro


Colegas de carteira - 45 anos depois dos bancos de escola


Mota e Sofia


José Inácio e AJ


A fotografia escrita


Planeando os próximos 45 anos



E depois viemo-nos todos embora com a clara sensação de que a Maria Rosa Colaço terá gostado. Nós gostámos muito. Muito mesmo.

(*) Fotografias de Joana Saramago

2 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Parabéns pela homenagem. Gostei de ler.
Manuela Gomes

2:06 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Tenho muita pena de não ter estado presente. Parabéns pela iniciativa.

11:11 da manhã  

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