terça-feira, novembro 09, 2004

As primeiras letras (II)

Sonega, Alentejo, Portugal, 1949. Professora Lurdes Tainha Saramago e classes.
© Lurdes Tainha Saramago


Excertos de uma entrevista de Ricardo França Jardim ao jornal A Página da Educação.

Quando descreve as várias escolas que frequentou, há nesses textos grande rigor etnográfico. Uma memória cheia de pormenores?

Não sei. Mas a evocação da memória é uma fabricação, uma recriação do que imaginamos e do que nos contam. Em relação à escola, era um sítio onde íamos todos os dias, mas por vezes há uma grande distorção em relação à realidade.

"A memória imaginada" foi o primeiro texto que encontrei que fala de um recreio – no "Ninho dos Pequeninos", o tal «Tarrafal das Criancinhas» – fundamentalmente ocupado por raparigas e não por rapazes.

Era uma escola religiosa só para raparigas, onde os rapazes eram admitidos a prazo, até aos 7 anos. Éramos meia dúzia de meninos da infantil. Havia uma espécie de linha de separação no recreio, e o lado onde ficavam os baloiços era-nos inacessível. As freiras eram muito segregacionistas, impunham uma separação de sexos.

Como foram os primeiros tempos de escola?

O primeiro dia é um mar de lágrimas. É o princípio da realidade em confronto com o do prazer…É o corte com a família.

Exacto, estávamos no aconchego. É como no parto, estávamos ali no líquido amniótico e fomos expulsos para este mundo cruel…

Gostou de andar na escola primária da Dona Egídia?

Uma professora de uma certa severidade. Era uma escola particular de uma daquelas professoras que faziam escola numa parte da casa onde residiam, uma sala onde coexistiam meninos da 1ª à 4ª classes. Escola típica da época que não faria muita diferença das escolas públicas: tinha aquelas carteiras com tinteiros onde colocávamos a pena e atirávamos a tinta para o gajo da frente.

Era ao mesmo tempo um local de transgressão.

Havia alguma severidade nos deveres mas era um lugar simpático…

E a sua experiência no Colégio Lisbonense, onde um dia também resolveu tornar-se cábula?

Na minha altura havia o liceu, uma escola comercial e industrial e dois colégios particulares, o Lisbonense e o Colégio Nuno Álvares, mais conhecido pelo "Caroço". O Dr. Caroço, seu proprietário e director, era um homem de disciplina férrea e castigos corporais; o aluno cábula ia para o "Caroço". Se não fosse aí endireitado, era exportado para uns colégios do Continente, com muita fama. Se o jovem não era "consertado" no colégio de Tomar, então passava para o Lisbonense, uma espécie de última paragem antes do deserto.
(...)