sábado, novembro 20, 2004

«Na morte de Maria Rosa Colaço»

Jazz: Icarus, Henry Matisse, 1943

13 de Outubro. Toca o telefone. De Portugal anunciam-me a morte da Maria Rosa Colaço. Fico com um nó na garganta e nem sei o que consegui articular. Uma tristeza imensa me invade. Um desgosto tão grande que me dá ganas de sair a correr, aos berros, de protesto pelo sofrimento da Amiga, pela dor indescritível do Vasco, da Maria, da Sofia, seus filhos tão queridos. Uma perda irreparável. E eu a mais de 2.000 quilómetros de distância.
A nossa amizade começou há mais de cinquenta anos, em Aljustrel. Ela era ainda uma estudantezinha e eu já trabalhava, pois cedo comecei. Por vezes ela estava à janela da sua tia. Outras vezes na livraria do Edmundo da Silva, onde eu era assíduo nas horas livres. Quando a Maria Rosa deixou Aljustrel para prosseguir os seus estudos ficou a trocar correspondência com o José Conceição, seu colega no colégio local. Ora entre mim e o Conceição há uma amizade que herdámos dos nossos pais. A mesma infância, a mesma escola primária, a mesma adolescência e por aí fora. Eu tinha lido algo da Maria Rosa numa página infantil de não sei que jornal. Escrevi um apontamento sobre o texto e pedi ao Conceição de o incluir na próxima carta. E dizia-lhe também que eu sentia que ela viria a ser uma grande na literatura portuguesa. Na resposta ela confessava que a D. Etelvina Lopes de Almeida, escritora e jornalista distinta, lhe havia dito mais ou menos a mesma coisa. Foi portanto através do Conceição que se iniciou o nosso intercâmbio, que rapidamente se tornou em amizade, dado que havia muito de comum nas nossas sensibilidades, o mesmo amor pelo Alentejo, pela literatura; assim como mesmos desejos de liberdade e de justiça social. Isto por volta de 1950!
Publiquei alguns textos pessoais na Gazeta do Sul. Ela alargava a sua colaboração à Planície de Moura, ao Diário do Alentejo, Diário do Sul, Diário de Notícias e a muitos outros jornais. Viríamos ambos a colaborar no Odemirense, levando connosco o desenhador aljustrelense Manuel Martins Lopes. O talento de Maria Rosa Colaço explodia e o seu nome começou a ser referência nos meios literários nacionais. Paralelamente havia então um são convívio entre o nosso grupo de jovens de Aljustrel e os jovens do Torrão, amigos da Maria Rosa. Reciprocidade de visitas para festas, aniversários, récitas, passeios... A Nossa Senhora do Castelo, no alto da Vila, o moinho, a represa das minas, os campos dos arredores foram testemunhos da nossa juventude, da nossa amizade e comunhão de ideias. E a nossa liberdade incomodava autoridades locais e bufos. Houve até suspeitas de haver entre nós gente subversiva. Excessos dos pilares do regime, naturalmente.
A nossa amizade prosseguia. Veio o meu casamento e o nascimento da primeira filha, a Filomena Luiza, abreviado em Menaliza, que logicamente seria apadrinhada pelo Zé Conceição e por Maria Rosa. O bebé foi a inspiração de um poema a transbordar de amor, alegria e ternura: “A menina dos olhos de Sol”.
Depois foi a Maria Rosa que terminou os estudos e começou – com êxito tão festejado – a sua carreira de educadora. E veio o casamento com o amor da sua vida, o advogado António Lille Malaquias de Lemos, figura de referência no teatro universitário português. Fundou o Grupo Cénico da Faculdade de Direito de Lisboa, os Jograis de Lisboa e os Jograis de Hoje, encenador de talento. A vida levou-os à Madeira, depois a Nampula, à Beira e a Lourenço Marques, em Moçambique e iam espalhando cultura por onde viveram.
Entretanto Aljustrel foi fulcro do clima de violência que reinava no País. Na rua a GNR e a PIDE atiraram sobre o povo, ferindo e matando gente inocente. E eu decidi subtrair os meus filhos a tal clima de violência. Em 1964 deixei o País. Foi na Bélgica, em Bruxelas, que me fixei e aos meus. Não é fácil deixar o País. Não é fácil recomeçar uma nova vida. Nada é fácil na emigração.
Mas um dia, em 1969, a Maria Rosa e o Lille vieram viver uns dias connosco em Bruxelas. Dias maravilhosos de convívio renovado onde cada momento foi aproveitado para o Lille se actualizar com o que havia de melhor em teatro no centro da Europa, ficou maravilhado com uma peça de Arrabal, assim como com o Ballet Béjart. Ficaram impressionados com a riqueza da vida cultural de Bruxelas e surpreendidos porque na comunidade portuguesa havíamos encenado o AUTO DO CURANDEIRO, de António Aleixo, peça proibida em Portugal. Dias de franca troca de impressões sobre nossas experiências de vida, eles nos confins de África, nós no coração da velha Europa. Notícias de amigos comuns, como José Afonso, que também foi parar à Beira e que agora iríamos receber de tempos a tempos na nossa casa em Bruxelas. Também houve discussão sobre a complexidade dos problemas de Portugal e do nosso povo. Inevitavelmente. Dias inesquecíveis de amizade profunda.
Só depois, muitos anos depois do 25 de Abril, houve o grande abraço do reencontro, o renovar de contactos, aquele adubar da velha amizade nunca desmentida. A cada ida a Portugal lá havia a oportunidade duma conversa, o prazer duma refeição familiar. Estou a lembrar-me dum serão em Almada, depois da estreia de uma peça de teatro com o Lille encenador e a discussão que se seguiu entre os actores, o escritor Romeu Correia, a Luiza Basto, a Maria Rosa e onde participámos. Cada reencontro foi uma festa. Os nossos filhos tinham crescido e eram nosso orgulho. A Maria Rosa era agora a figura grada da literatura portuguesa, com vasta obra publicada.
Tragicamente o pior estava reservado para os meus amigos. No primeiro dia de 2003 o Lille sucumbiu a terrível doença. Lutou desesperadamente e foi com horrível sofrimento que viu a vida fugir-lhe. Maria Rosa sobreviveu penosamente à perda do grande amor da sua vida. Mas não por muito tempo. A saúde, abalada, foi-se degradando até que nesse trágico dia 13 de Outubro, cansada de sofrer, entregou a alma ao seu Deus, esse mesmo Deus em que acreditava e que não foi nada generoso, nem para ela, nem para o seu marido, nem para os seus filhos, o Vasco, a Maria e a Sophia. Como acreditar num Deus generoso e justo??
Vivi angustiado algum tempo com necessidade de chorar e os olhos desesperadamente secos. Mas no sábado seguinte, 3 dias após a perda grande da irmã de sensibilidade, andando ao acaso, encontrei-me à porta dum cinema. Exibia-se o filme “Cadernos de Viagem”, de realizador brasileiro. Filme que relata a grande viagem de dois amigos estudantes pela América do Sul, numa velha motocicleta. A miséria de vida dos camponeses argentinos, dos mineiros de cobre do Chile, a leprosaria do Perú e muitas outras situações trágicas marcaram profundamente os nossos heróis. Neles ficou a convicção da necessidade de lutar por um mundo mais justo, não só para o povo da América Latina, como para todos os que sofrem a miséria a que os condena uma exploração impiedosamente assassina. Um desses dois estudantes foi mais tarde o médico e revolucionário CHE GUEVARA. Que anos depois teve a cabeça a prémio e foi assassinado pelos Estados Unidos da América. O trágico das situações e a angústia que estava dentro de mim, fez que dei comigo a chorando amargamente. Como não imaginava que se pudesse chorar aos 72 anos.
Acreditem ou não, tive então a sensação nítida que a meu lado, na cadeira fisicamente vazia, estava comigo a Maria Rosa Colaço. Numa presença amiga e solidária, para me confortar no grande desgosto que me causou a sua perda. Uma presença como aquela que me acompanhou vida fora, em mais de cinquenta anos, me ensinando o Amor, me ensinando a VIDA.
O vazio que sinto cada vez que volto a Portugal, pela ausência de entes queridos, vai ser, a partir de agora, imensamente maior. E mais doloroso.
Adeus Amiga.
Deixas-me o mundo mais pobre e mais triste.

José Soares
Outubro 2004
Bruxelas

1 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Prezado Sr. José Soares,

estudo, no Brasil, a obra de António Aleixo e fiquei vivamente interessado em saber sobre a proibição da encenação de seu "Auto do Curandeiro" na década de 1960, em Portugal. Gostaria muito de entrar em contato com o senhor e deixo meu e-mail: frizero@yahoo.com. Um cordial abraço!

6:16 da tarde  

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